Era para ser um domingo qualquer. Acordar com o barulho da
mãe botando os pratos na mesa depois de uma noite de festa, fazer uma pipoca de
tarde, encilhar o mate. De noite, dar uma volta com as gurias. Comer algo bem
calórico para começar a semana de dieta.
Naquele domingo, fechei os olhos muitas vezes. Não
adiantava. Eu estava ali. Choros, gente
aérea, caixões lado a lado, comida chegando, flashes da Imprensa, religiosos e
profissionais ajudando, abraços demorados. Os mais demorados que já vi. As
pessoas dividiam-se entre seus celulares e entre os estranhos que já não eram
estranhos, a conexão tomou conta do lugar. Em um caixão, um menino, o pai ao
lado. Tinha o olhar perdido e as mãos em oração. A assistente social lhe explicava
algo. Logo ali, um grupo de familiares consolando uma mãe. Não era choro que
vinha dela, era uma dor que abraçava o lugar. Escorei na grade de contenção. Lá
de dentro do ginásio, saía mais um caixão. Impossível descrever uma
tragédia assim, se não por fragmentos, alguns detalhes, alguns delírios.
No domingo de manhã, quando a tragédia começava a ganhar o
planeta, pedi a um amigo em comum para bater no apartamento da Vanessa. O
silêncio foi a nossa resposta. Eu sabia que seria, mas a gente não acredita.
Este silêncio tomou conta do domingo, mesmo em meio ao barulho de helicópteros,
ambulâncias, carros, choro, gritos. Muita gente já estava com o coração
silenciado, com a mente preparada. Mas seguiam como eu: esperando encontrar.
Afinal, os destinos são tão complexos, que podia ter ocorrido do “meu filho
resolveu não sair, ficou na casa dos amigos e não atende o celular”; “minha
filha deve estar no hospital”; “meu amigo, de repente,
não tinha entrado ainda na boate, logo vai entrar em contato comigo”. Celulares
que nunca mais atenderam, luzes de um visor que piscaram sem esperança.
Cheguei de volta a Santiago com a comitiva da URI na
segunda-feira em torno das 5h. Senti vontade de nunca mais dormir. De
rasgar todos os jornais porque não queria ler aquilo. Fui no velório da minha
amiga que há pouco mais de 24 horas estava sob as luzes coloridas da noite,
envolvida pelo dom da vida. Fui para casa olhando o sol nascer, a cidade
acordar, as pessoas pegarem seus rumos. O universo emanava outra energia.
Parece que o mundo deu uma pausa até as pessoas entenderem o
que realmente ocorreu. Até conhecermos os heróis da noite, foram dias
conferindo reportagens, assistindo vídeos, ouvindo fatos. Até sabermos quem
ficara ferido, quem faleceu, também demorou. O que veio de imediato foi a falta
de esperança. O choro sem solução. A cabeça que balança sem acreditar. Naquela
semana, surgiam listas. Eram os nomes atualizados. Nomes que certamente um dia
estiveram no listão de um vestibular e em tantas listas que nos fazem felizes.
Depois, falou-se em impunidade. Daí doeu. Em contraste com
os rostos jovens, que carregavam o mundo no semblante, as imagens e detalhes de
quem não se preocupou o suficiente, de quem poderia evitar. Seguiram-se
entrevistas, análises, pesquisas. Seguiu-se a vida. Santa Maria provocou um
outro olhar. As boates do país passaram a receber fiscalização (hoje já não sei como está).
A história ganhou novos capítulos para muitos. Só que aquela
noite nunca mais acabou. O ursinho no túmulo, o quarto vazio do filho,
a mesa do jantar incompleta, o porta retrato traduzindo saudade. A foto com a
toga não aconteceu; o sonho de comprar o carrinho para dar uma ‘banda’ nunca
chegou; a viagem para o exterior não foi programada; o próximo sábado para uma
nova junção não veio; o ‘Brahma’ teve que esperar; o trabalho ou estágio da
segunda-feira não teve ponto; a bolinha verde do Facebook não mais apareceu; a
música nunca mais tocou.
O que ficou com a Kiss? As promessas de que viveríamos
melhor? Amamos o próximo? Temos compaixão? E empatia? Estamos tendo um dia bem
aproveitado? Cooperamos com colegas de trabalho e convivemos com os familiares
e amigos? Fica na consciência de cada um porque cada um sabe de suas escolhas,
de suas dores, de suas alegrias, cada um é dono de si e possui as suas vontades
e possibilidades. Possibilidades! Para uns, a vida não foi mais possível, nós,
temos a cada dia a chance de escolher, acertar, errar, tentar.
Me tornei mais humana, mais sensata, depois deste dia sem
fim. Uma parte de mim ainda está no 27 de janeiro. Quero deixar esta parte lá. Esta
parte está sempre como aquele dia: esperando encontrar. Resiliência, consolo,
esperança, a todos os familiares, que
precisam muito continuar.
Vanessa, eu e Yanna |
*Morei por 10 anos em Santa Maria. Foi onde me formei, onde tive muitas experiências. Precisava fazer este relato/depoimento sobre o 27 de janeiro de 2013. Acredito que, junto a tantos outros textos e homenagens, seja uma forma de
memória e de alerta para que ‘Nunca mais
se Repita!’.
Palavras emocionantes Sô!Expressou o sentimento de muitos corações hoje!Me lembro da nossa correria no dia dessa foto,pegamos tele moto,maquiagem na rodo, quase perdendo o ônibus pra comemorar contigo.Aquela correria gostosa com aquela risada marcante da Vá, típico dia de muitas das nossas indiadas.Saudades!
ResponderExcluirQuanta indiada boa!! Saudades de tudo. Ela está olhando pra nós!
Excluir