sábado, 26 de janeiro de 2019

Kiss 6 anos: o silêncio me respondeu


Era para ser um domingo qualquer. Acordar com o barulho da mãe botando os pratos na mesa depois de uma noite de festa, fazer uma pipoca de tarde, encilhar o mate. De noite, dar uma volta com as gurias. Comer algo bem calórico para começar a semana de dieta.

Naquele domingo, fechei os olhos muitas vezes. Não adiantava.  Eu estava ali. Choros, gente aérea, caixões lado a lado, comida chegando, flashes da Imprensa, religiosos e profissionais ajudando, abraços demorados. Os mais demorados que já vi. As pessoas dividiam-se entre seus celulares e entre os estranhos que já não eram estranhos, a conexão tomou conta do lugar. Em um caixão, um menino, o pai ao lado. Tinha o olhar perdido e as mãos em oração. A assistente social lhe explicava algo. Logo ali, um grupo de familiares consolando uma mãe. Não era choro que vinha dela, era uma dor que abraçava o lugar. Escorei na grade de contenção. Lá de dentro do ginásio, saía mais um caixão. Impossível descrever uma tragédia assim, se não por fragmentos, alguns detalhes, alguns delírios.

No domingo de manhã, quando a tragédia começava a ganhar o planeta, pedi a um amigo em comum para bater no apartamento da Vanessa. O silêncio foi a nossa resposta. Eu sabia que seria, mas a gente não acredita. Este silêncio tomou conta do domingo, mesmo em meio ao barulho de helicópteros, ambulâncias, carros, choro, gritos. Muita gente já estava com o coração silenciado, com a mente preparada. Mas seguiam como eu: esperando encontrar. Afinal, os destinos são tão complexos, que podia ter ocorrido do “meu filho resolveu não sair, ficou na casa dos amigos e não atende o celular”; “minha filha deve estar no hospital”; “meu amigo, de repente, não tinha entrado ainda na boate, logo vai entrar em contato comigo”. Celulares que nunca mais atenderam, luzes de um visor que piscaram sem esperança.  

Cheguei de volta a Santiago com a comitiva da URI na segunda-feira em torno das 5h. Senti vontade de nunca mais dormir. De rasgar todos os jornais porque não queria ler aquilo. Fui no velório da minha amiga que há pouco mais de 24 horas estava sob as luzes coloridas da noite, envolvida pelo dom da vida. Fui para casa olhando o sol nascer, a cidade acordar, as pessoas pegarem seus rumos. O universo emanava outra energia.

Parece que o mundo deu uma pausa até as pessoas entenderem o que realmente ocorreu. Até conhecermos os heróis da noite, foram dias conferindo reportagens, assistindo vídeos, ouvindo fatos. Até sabermos quem ficara ferido, quem faleceu, também demorou. O que veio de imediato foi a falta de esperança. O choro sem solução. A cabeça que balança sem acreditar. Naquela semana, surgiam listas. Eram os nomes atualizados. Nomes que certamente um dia estiveram no listão de um vestibular e em tantas listas que nos fazem felizes.

Depois, falou-se em impunidade. Daí doeu. Em contraste com os rostos jovens, que carregavam o mundo no semblante, as imagens e detalhes de quem não se preocupou o suficiente, de quem poderia evitar. Seguiram-se entrevistas, análises, pesquisas. Seguiu-se a vida. Santa Maria provocou um outro olhar. As boates do país passaram a receber  fiscalização (hoje já não sei como está).

A história ganhou novos capítulos para muitos. Só que aquela noite nunca mais acabou. O ursinho no túmulo, o quarto vazio do filho, a mesa do jantar incompleta, o porta retrato traduzindo saudade. A foto com a toga não aconteceu; o sonho de comprar o carrinho para dar uma ‘banda’ nunca chegou; a viagem para o exterior não foi programada; o próximo sábado para uma nova junção não veio; o ‘Brahma’ teve que esperar; o trabalho ou estágio da segunda-feira não teve ponto; a bolinha verde do Facebook não mais apareceu; a música nunca mais tocou.

O que ficou com a Kiss? As promessas de que viveríamos melhor? Amamos o próximo? Temos compaixão? E empatia? Estamos tendo um dia bem aproveitado? Cooperamos com colegas de trabalho e convivemos com os familiares e amigos? Fica na consciência de cada um porque cada um sabe de suas escolhas, de suas dores, de suas alegrias, cada um é dono de si e possui as suas vontades e possibilidades. Possibilidades! Para uns, a vida não foi mais possível, nós, temos a cada dia a chance de escolher, acertar, errar, tentar.

Me tornei mais humana, mais sensata, depois deste dia sem fim. Uma parte de mim ainda está no 27 de janeiro. Quero deixar esta parte lá. Esta parte está sempre como aquele dia: esperando encontrar. Resiliência, consolo, esperança,  a todos os familiares, que precisam muito continuar.  

Vanessa, eu e Yanna

*Morei por 10 anos em Santa Maria. Foi onde me formei, onde tive muitas experiências. Precisava fazer este relato/depoimento sobre o 27 de janeiro de 2013. Acredito que, junto a tantos outros textos e homenagens, seja uma forma de memória e de alerta  para que ‘Nunca mais se Repita!’. 


quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Dica de leitura: Tecendo a Vida em Contos e Crônicas


Quando nos encontramos com amigos e familiares e passamos a relembrar as histórias da infância, impossível o momento não terminar em muita risada. Furtar algo da geladeira, inventar uma mentirinha aos pais, subir em um local proibido. Travessuras que na época eram terríveis em nossa cabeça infantil. Hoje, ao vermos desvios em verbas públicas, assédios, mortes violentas, percebemos que as histórias que ficaram para trás são a marca da inocência, deixando muita saudade e sorrisos. O livro de Dirceu Luiz Alberti, professor universitário, traz passagens cômicas e empolgantes da infância, em que tu fica pensando: qual desfecho isso terá?

O Tecendo a Vida em Contos e Crônicas, lançado em novembro na Feira do Livro de Santiago, estava na minha fila (fila de leitura e de comida são boas). Li ele ontem e asseguro a leveza e simplicidade da obra, fugindo de linguagem técnica ou rebuscada. É como se estivéssemos numa roda de conversa num domingo, tomando uma caipirinha, fazendo aquele churrasquinho e ouvindo boas histórias.

As passagens engraçadas da infância denotam uma harmonia familiar e uma afetividade intensa. Mostra como era possível trabalhar, ter disciplina e brincar. A parte do seminário me emocionou, pois, apesar do rigor e exigências, sei que é uma fase de muita amizade e direcionamento profissional e pessoal. As histórias enquanto professor da URI (onde também trabalhei por seis anos) demonstram que a docência é cheia de desafios, encantos, problemas, risos. Já os textos relativos à natureza descrevem algo que é muito superior a nós. Penso como o professor: a natureza é a protagonista do universo. É uma perfeição. O vento, os galhos, a água, as pedras, os animais, as flores. Faltam palavras, sobram sensações.

“Se assim está ordenado, por que reclamamos tanto das chuvas, ventos e granizos? Não seriam os humanos, insanos intrusos nesse ciclo maravilhoso que a natureza põe em movimento? Nas enchentes, não estariam os rios fazendo uma limpeza geral em seus leitos para depurá-los de nosso mal feito, renovando as águas fétidas lançadas em si pelos homens? Por que não aceitar que a natureza continue ditando as regras, no jogo da vida? Por que nos distanciamos tanto dessa ordem universal, criando um mundo paralelo, antropocêntrico, predador de outros mundos? Teríamos perdido a nossa racionalidade original que estava integrada aos mistérios cósmicos e com ele interagia harmoniosamente?”. Este é um trecho do texto Arranjos da Natureza.

Cada história contada termina de forma satisfatória. Algumas fazem constatações para a vida, às vezes, relacionando fatos passados com o mundo atual. É possível absorver dicas e conselhos nas linhas do Tecendo a Vida (aí está a maravilha da leitura).

Dirceu é natural de Tucunduva. Com 14 anos, ingressou no Seminário do Sagrado Coração de Jesus, em Corupá, Santa Catarina. Mudou-se para Santiago em 1983. Foi em 1984 que surgiu a oportunidade de atuar na então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FAFIS).

Projeto editorial da Oliveira Casa Editorial, o livro contém 107 páginas e pode ser adquirido no Me Gusta, em frente à pracinha de brinquedos, em Santiago. O prefácio é do renomado professor Jorge Luiz da Cunha. 

Conversei com o autor sobre o livro: “Fico muito feliz que você gostou da leitura. Este retorno é importantíssimo para quem escreve”.

Colocar histórias no papel é uma forma de se autoconhecer. É a chance de relembrar momentos, sentir saudade, pensar no presente, lembrar das pessoas que por nós passaram. Algumas histórias, que estavam em uma gaveta bem guardada da nossa cabeça, podem parar nas mãos de quem nem nos conhece ou jamais imaginara termos vivido aquilo. Aí está uma forma de se identificar com o outro, conectar-se, tecer a vida.




Ideias!