Quando criança, eu adorava os meus bichinhos de pelúcia,
que, na época, eram preenchidos com bolinhas de isopor. Nem perto dos brinquedos
de agora. Colocávamos eles sobre a cama e fingíamos que eram os nossos alunos.
Dávamos aula de português, de matemática. Mas que turma bagunceira: chamávamos
a atenção dos ursos, como se realmente estivessem nos ouvindo.
O pátio de casa era palco de muita correria, energia de
criança, suor, sonhos. O esconde- esconde, pelo que lembro, era a brincadeira
preferida. Um dia, Lucio deixou o chinelo (lembro bem, um Raider) em uma
direção, mas, ele havia ido para outro lado. Bela tática. Perdi de encontrá-lo.
Não éramos como os antigos, daqueles que se guiavam pelo
nascer ou pôr do sol, mas tínhamos a plena noção de quando nosso dia de
brincadeira, conversas de crianças e compartilhamento de sonhos tinham chegado
ao fim.
A adolescência é mesmo a fase mais complexa da vida. É nesta
etapa que cada um começa a ir para um lado. Escolhas diferentes. Ciclos que
terminam. Ciclos que se iniciam. Infância que fica para trás. Eu e Lucio nos
víamos pouco. No início da vida adulta sim, nos separamos pela distância que
separa Indaial (SC) de Santiago (RS). Uma separação comum na vida de
familiares, ainda mais quando se tem uma família tão grande como a minha.
Lúcio realizou sonhos: formou-se, trabalhava em uma escola,
tratava com professores, construía o sonho de muitas crianças e suas famílias. Cada
conquista teve sonho, suor, luta. Sonhar exige sacrifícios, ser feliz dá
trabalho, mas, pode-se lutar sem perder a doçura, bondade e afeto, né Lucio? Sabe
aquela história de colocar um tijolinho, depois outro, mais um e assim por
diante? Tem gente que não herda castelos, mas sim garra e sabedoria, não é
primo?
Lucio era só um. Não se fragmentava. Na escola, em casa, nas
ruas, Lucio era firmeza, bondade, humildade, honestidade. Arrisco dizer que
Lucio nunca matou uma mosca. Nunca gritou. Nunca fez cara feia a alguém. Nunca
precisou de plateia. Sua bondade não precisava ser dita, ser escrita, ser
fotografada.
Lucio, quando nasceu, esteve predestinado a não fazer o mal,
a não causar o mal, a não gerar preocupações. Na nossa escola, teve a coragem de ser
um menino autêntico, sensível ao próximo, enfrentando todas as costumeiras
barras da fase escolar. Lucio nunca se escondeu atrás de algum tipo de
desculpa para encarar a vida. Vida que traz surpresas, que interrompe histórias,
que apresenta desafios. Lucio não podia
ser deste mundo. Por isso ficou tão pouco tempo nele. Tá, mas uma pessoa como
Lucio existe? Sim, e ele foi da nossa família, talvez o único familiar com
tamanhas qualidades.
Ainda tenho os ursinhos, os nossos alunos. Lucio teve seus
alunos. Teve a sua escola. Lucio foi sempre decidido em saber o que
queria. Viajou no seu próprio saber. Com certeza aplicava uma pedagogia baseada
na técnica mas na sua história de vida. Tenho certeza que esta escola, estes
professores, estes alunos, foram felizes! Não correu contra o tempo- que é
soberano. Eu tentei correr, viver uma vida em um mês, trocar a noite pelo dia,
viver muitas emoções num dia só. Aprendi com Lúcio: tempo, você nasceu para ser
respeitado.
Ainda olho o sol aqui da minha sacada, tentando adivinhar
que horas são. Mas já não faz tanta diferença. Porque agora a gente não obedece
as regras do sol como fazíamos quando criança. A gente não pára. A gente corre.
A gente não liga se tem sol, se tem lua. Não olhamos as estrelas.
Ainda brinco de esconde- esconde. Mas é um se esconder da
gente mesmo, em certos dias. Afinal, são tantos afazeres, tantos problemas,
tantas decepções cotidianas, que a gente se esconde. Amigo algum vai nos encontrar, nós mesmos precisamos sair do esconderijo.
Ainda ando pelo mesmo pátio da casa que andávamos quando
criança, mas já não desbravo todos os cantos, já não conheço todas as árvores,
já não sento na calçada, já não olho as flores. A gente só estaciona o carro no
pátio e é comandado pelo fluxo das horas. Nossas energias de criança, que ainda
devem estar ali, certamente se envergonham de nos ver diante da lata fria de um
carro, sabendo que tem tanta vida pulsando na grama, nas flores, nas árvores,
no ar.
Vontade de gritar. De fazer o universo ouvir quem foi Lucio,
do legado que nos deixa, da bondade e humildade que o caracterizaram. Mas, não
faria sentido algum. Pois Lucio ensinou que é no silêncio, no equilíbrio, no
olhar, no sentir, que estabelecemos as melhores conexões com nós mesmos e com o
mundo.
Talvez eu não seja digna de dizer qualquer palavra ao Lucio.
Mas, sei que meus primos também lembram de muitas passagens com este ser de luz.
E, para amenizar a dor de perder alguém que tem minha idade, e que foi o meu
companheiro como professor em uma infância tão longe, é preciso escrever.
Depois da partida do Lucio, eu quero ser melhor, quero me espelhar nas suas atitudes.
Quero conseguir!
Obrigada, do fundo do coração, primo Lucio.
Palavras perfeitas para nosso Lúcio. E pode ter certeza de que ele mostrou a muita gente o que é sabedoria e bondade!
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