segunda-feira, 29 de abril de 2019

Mais Lúcios!


Quando criança, eu adorava os meus bichinhos de pelúcia, que, na época, eram preenchidos com bolinhas de isopor. Nem perto dos brinquedos de agora. Colocávamos eles sobre a cama e fingíamos que eram os nossos alunos. Dávamos aula de português, de matemática. Mas que turma bagunceira: chamávamos a atenção dos ursos, como se realmente estivessem nos ouvindo.

O pátio de casa era palco de muita correria, energia de criança, suor, sonhos. O esconde- esconde, pelo que lembro, era a brincadeira preferida. Um dia, Lucio deixou o chinelo (lembro bem, um Raider) em uma direção, mas, ele havia ido para outro lado. Bela tática. Perdi de encontrá-lo.  

Não éramos como os antigos, daqueles que se guiavam pelo nascer ou pôr do sol, mas tínhamos a plena noção de quando nosso dia de brincadeira, conversas de crianças e compartilhamento de sonhos tinham chegado ao fim.

A adolescência é mesmo a fase mais complexa da vida. É nesta etapa que cada um começa a ir para um lado. Escolhas diferentes. Ciclos que terminam. Ciclos que se iniciam. Infância que fica para trás. Eu e Lucio nos víamos pouco. No início da vida adulta sim, nos separamos pela distância que separa Indaial (SC) de Santiago (RS). Uma separação comum na vida de familiares, ainda mais quando se tem uma família tão grande como a minha.

Lúcio realizou sonhos: formou-se, trabalhava em uma escola, tratava com professores, construía o sonho de muitas crianças e suas famílias. Cada conquista teve sonho, suor, luta. Sonhar exige sacrifícios, ser feliz dá trabalho, mas, pode-se lutar sem perder a doçura, bondade e afeto, né Lucio? Sabe aquela história de colocar um tijolinho, depois outro, mais um e assim por diante? Tem gente que não herda castelos, mas sim garra e sabedoria, não é primo?  

Lucio era só um. Não se fragmentava. Na escola, em casa, nas ruas, Lucio era firmeza, bondade, humildade, honestidade. Arrisco dizer que Lucio nunca matou uma mosca. Nunca gritou. Nunca fez cara feia a alguém. Nunca precisou de plateia. Sua bondade não precisava ser dita, ser escrita, ser fotografada.  

Lucio, quando nasceu, esteve predestinado a não fazer o mal, a não causar o mal, a não gerar preocupações. Na nossa escola, teve a coragem de ser um menino autêntico, sensível ao próximo, enfrentando todas as costumeiras barras da fase escolar. Lucio nunca se escondeu atrás de algum tipo de desculpa para encarar a vida. Vida que traz surpresas, que interrompe histórias, que apresenta desafios.  Lucio não podia ser deste mundo. Por isso ficou tão pouco tempo nele. Tá, mas uma pessoa como Lucio existe? Sim, e ele foi da nossa família, talvez o único familiar com tamanhas qualidades.

Ainda tenho os ursinhos, os nossos alunos. Lucio teve seus alunos.  Teve a sua escola.  Lucio foi sempre decidido em saber o que queria. Viajou no seu próprio saber. Com certeza aplicava uma pedagogia baseada na técnica mas na sua história de vida. Tenho certeza que esta escola, estes professores, estes alunos, foram felizes! Não correu contra o tempo- que é soberano. Eu tentei correr, viver uma vida em um mês, trocar a noite pelo dia, viver muitas emoções num dia só. Aprendi com Lúcio: tempo, você nasceu para ser respeitado.

Ainda olho o sol aqui da minha sacada, tentando adivinhar que horas são. Mas já não faz tanta diferença. Porque agora a gente não obedece as regras do sol como fazíamos quando criança. A gente não pára. A gente corre. A gente não liga se tem sol, se tem lua. Não olhamos as estrelas.

Ainda brinco de esconde- esconde. Mas é um se esconder da gente mesmo, em certos dias. Afinal, são tantos afazeres, tantos problemas, tantas decepções cotidianas, que a gente se esconde. Amigo algum vai nos encontrar, nós mesmos precisamos sair do esconderijo.

Ainda ando pelo mesmo pátio da casa que andávamos quando criança, mas já não desbravo todos os cantos, já não conheço todas as árvores, já não sento na calçada, já não olho as flores. A gente só estaciona o carro no pátio e é comandado pelo fluxo das horas. Nossas energias de criança, que ainda devem estar ali, certamente se envergonham de nos ver diante da lata fria de um carro, sabendo que tem tanta vida pulsando na grama, nas flores, nas árvores, no ar.

Vontade de gritar. De fazer o universo ouvir quem foi Lucio, do legado que nos deixa, da bondade e humildade que o caracterizaram. Mas, não faria sentido algum. Pois Lucio ensinou que é no silêncio, no equilíbrio, no olhar, no sentir, que estabelecemos as melhores conexões com nós mesmos e com o mundo.

Talvez eu não seja digna de dizer qualquer palavra ao Lucio. Mas, sei que meus primos também lembram de muitas passagens com este ser de luz. E, para amenizar a dor de perder alguém que tem minha idade, e que foi o meu companheiro como professor em uma infância tão longe, é preciso escrever. Depois da partida do Lucio, eu quero ser melhor, quero me espelhar nas suas atitudes. Quero conseguir!  

Obrigada, do fundo do coração, primo Lucio.  




Um comentário:

  1. Palavras perfeitas para nosso Lúcio. E pode ter certeza de que ele mostrou a muita gente o que é sabedoria e bondade!

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